O concurso da CML privilegia habitação em propriedade coletiva. Embora previsto no regime jurídico das cooperativas de habitação, não se conhecem, em termos nacionais, exemplos que sirvam de modelo.

A propósito de uma entrevista concedida ao Eco online pela Senhora Vereadora da Habitação do Município de Lisboa, onde, entre outros temas, anunciou a abertura de um concurso para atribuição de um terreno a cooperativas de habitação, no Lumiar, importa registar que para as cooperativas de habitação económica que, nas últimas décadas, também construíram a cidade de Lisboa, a realidade é bem diferente daquela que nos foi apresentada.

O referido concurso privilegia habitação no regime de propriedade coletiva, um modelo de que, embora previsto no regime jurídico das cooperativas de habitação, não se conhecem, em termos nacionais, exemplos que sirvam de modelo e referencial de boas práticas. Acresce que, embora previsto na Lei 56/2023, não são conhecidas linhas de crédito para o efeito, sejam públicas (IHRU/Banco Português de Fomento) sejam da banca em geral! Sem financiamento as cooperativas interessadas na propriedade coletiva ficarão afastadas e em seu lugar avançarão cooperativas que apresentem candidaturas para propriedade individual e desde que comprovadamente tenham garantia de financiamento para o efeito, o que não se tem revelado fácil, sobretudo para cooperativas sem experiência e historial. Registe-se ainda que ao contrário do que temos visto anunciado pelos responsáveis do Município, o terreno não é gratuito, é pago com a entrega de uma fração autónoma que vai ser paga por todos os membros da cooperativa, embora a mesma fração possa ser posteriormente cedida à cooperativa para desenvolvimento de ProjetoSocial, cujas características estão pouco defi nidas.
Para qualquer dos modelos previstos, a Senhora Vereadora Arqtª Filipa Roseta lançou, de forma muito entusiástica e despreocupada, um desafio à população: “descobrir os vizinhos, ir à cooperativa António Sérgio para formar a cooperativa e garantir que têm fi nanciamento”! Fantástico, nem se percebe como é que este modelo não se replica por toda a cidade e, já agora, pelo País fora! É muito bom sonhar, mas de vez em quando convém descer à terra e enfrentar a realidade em que vivemos.
Para além deste concurso, sabe-se que a Câmara Municipal de Lisboa está a preparar concursos para outros quatro pequenos lotes. No final, estes cinco “projetos-piloto” apontam para cerca de 90 fogos, e para quem anuncia que o Município tem terrenos para construir cercade 7.000 fogos e o Estado outro tanto, não se percebe tanta falta de ambição em possibilitar que o setor cooperativo, ligado à habitação económica, possa continuar o trabalho que durante as últimas quatro décadas permitiu a construção de mais de três mil fogos de habitação a custos controlados, por toda a cidade de Lisboa, em particular em zonas de grande concentração de habitação social, e não na Expo como erradamente é citado na dita entrevista da Senhora Vereadora, contribuindo assim para a construção de uma cidade mais coesa e socialmente sustentável. Aliás, o pagamento do direito de superfície naqueles casos foi feito com a entrega ao Município de 10 % dos fogos construídos, distribuídos indiscriminadamente pelos edifícios, destinados ao cumprimento das suas políticas de habitação acessível, integrando inquilinos municipais com os membros das cooperativas; e isto não é também um projeto social?
Este trabalho de enorme relevância social registou, entre 2009 e 2017,uma assinalável interrupção por força da crise bancária e fi nanceira mundial, que impediu o acesso ao crédito a famílias e entidades do setor imobiliário, e que a par da larga sobre oferta habitacional que o País registava, conduziu à inevitável consequência da desistência de um elevado número de cooperadores inscritos em cooperativas com habitações em projeto.
Por outro lado, e cumulativamente, a excessiva morosidade na concretização de operações urbanísticas, devido a indefinições e outras burocracias camarárias, originaram dificuldades intransponíveis para muitas cooperativas, o que no caso de Lisboa levou a que tivessem “sido devolvidos” ao Município, terrenos já cedidos e que previam a construção pelas cooperativas de cerca de 900 habitações, em vários locais da cidade, por falta de candidatos, licenciamentos e financiamentos! E só em 2013 e 2014 foi possível realizar a escritura de direito de superfície para a construção de dois lotes, com 141 habitações, no Bairro do Vale Formoso.
Por razões alheias às cooperativas, apenas em 2017 e depois de muitas amarguras, foi possível licenciar a construção do primeiro lote e só um ano depois se obteve o necessário financiamento bancário; e este lote está construído e habitado. Para o segundo lote só em 2023 se obteve a licença de construção e o financiamento bancário, encontrando-se neste momento em fase adiantada de construção, prevendo-se a conclusão para meados do próximo ano.
E foi assim que, pese embora todos os escolhos que foram surgindo pelo seu caminho, as cooperativas de forma organizada e resiliente foram capazes de cumprir as suas obrigações, que bom teria sido que as demais entidades envolvidas tivessem cumprido, em tempo útil, a sua missão…
Todo o historial de bem fazer habitação cooperativa em Lisboa e em particular estes últimos processos do Vale Formoso contrariam de forma evidente a argumentação de que os maus exemplos das cooperativas Ex-SAAL, que aconteceram no início dos anos 80 do século passado e para o qual concorreram seguramente e solidariamente más decisões das cooperativas, do Município e do INH, impõem agora que o Município opte, (volto a citar a Senhora Vereadora da Habitação) por atribuir terrenos a “… cooperativas mais pequenas por isso. Não vamos já para duzentas e tal casas, vamos fazer uma coisa pequena. É uma comunidade logo à partida, mais fácil de estar solidamente agregada do que se forem 220”. Esta narrativa é inaceitável, por ser desadequada à realidade e prejudicial aos interesses da cidade e dos munícipes.
Não temos qualquer dúvida que a afetação de terrenos municipais para construção de habitação cooperativa é uma medida que se saúda, mas melhor seria que fosse feita com critério, que não impusesse às cooperativas regras contrárias ao seu regular e legal funcionamento e que não atribuísse ao Município competências que manifestamente não tem. Ao Município devem ser reconhecidas e prestadas todas as garantias que as casas construídas não podem ser livremente transacionadas no mercado, deixando de cumprir o seu objetivo primeiro; coisa diferente é querer cercear as cooperativas da sua autonomia, que se encontra consagrada na lei.
Sem prejuízo de serem acarinhados e apoiados projetos-piloto que visem dar resposta a novas necessidades habitacionais e conceitos devida, urge dar resposta a modelos sobejamente testados e com resultados para os cidadãos e para o Município, com a devida escala, que nunca deverá ser inferior a cerca de cinquenta fogos por projeto, e desenvolvidos pelas cooperativas no âmbito da habitação a custos controlados, com todas as garantias de se destinarem a habitação própria e permanente dos cooperadores.
Termino, mas sem antes recordar que na apresentação pública do concurso para atribuição de terreno no Lumiar, a Senhora Vereadora terminou a sua apresentação com a projeção de um slide com a frase: “As cooperativas já construíram milhares de casas em Lisboa e podem construir muito mais”. Não posso estar mais de acordo e por isso pergunto, de que estão à espera para permitirem que isso aconteça?
Manuel Tereso
Presidente da FENACHE-Federação Nacional de Cooperativas de Habitação Económica